Há 522 anos, morria o pregador incendiário, que mandara queimar quadros renascentistas.
Em 23 de
maio de 1498, por ordem do papa Alexandre VI, o frei dominicano Girolamo
Savonarola ia (morto) à fogueira.
Assim, com
um toque de ironia, terminava a carreira de um pregador literalmente
incendiário.O campeão das fogueiras das vaidades, em que queimava
insubstituíveis obras de arte renascentista — meros produtos da soberba
humana, segundo ele.
Um rebelde
moralista
Vindo de uma
tradicional família de Ferrara, Itália, Girolamo Savonarola nasceu em 21 de
setembro de 1452. Entrou para a Ordem Dominicana em 1474, e logo ficou
indignado com a corrupção e os excessos da nobreza e da Igreja na Itália
renascentista. No convento, passou a relatar suas ideias em tratados
filosóficos, inspirado por Aristóteles e São Tomás de Aquino.
Girolamo Savonarola, por Fra Bartolommeo / Crédito: Wikimedia Commons |
Em 1481, foi
enviado para pregar em Florença, no centro do Renascimento, onde passou a
criticar fortemente a imoralidade da sociedade sob o domínio dos Médici, que
mandavam na república desde o início do século 15. Os gastos exorbitantes e as
festas suntuosas de Lorenzo de Médici, o Magnífico, despertaram sua ira. O frei
estava decidido a combater a corrupção e resgatar o sentido da fé católica,
custasse o que custasse.
No púlpito
da igreja de São Marcos, Savonarola profetizava a chegada do juízo final. Os
sermões logo passaram a atrair milhares, que se aglomeravam horas antes do
início da pregação, ansiosas para ouví-lo condenar o mundo e pregar o Paraíso.
Fogueira das
vaidades
Após a morte
de Lourenço de Médici, em 1492, Savonarola atingiu seu auge. Expulsou de
Florença o sucessor, Pedro de Médici, e se tornou líder da cidade. Em 1494, quando
o rei Carlos VIII da França invadiu a Itália e ameaçou atacar Florença, as
profecias do frei pareciam se realizar. O desespero fez aumentar ainda
mais sua popularidade.
Savonarola escrevendo em reclusão / Crédito: Wikimedia Commons |
Savonarola
implementou novas regras no convento de São Marcos, obrigando todos os frades a
levar uma vida sem luxo e ostentação, e formou a Congregação Toscana, com as
cidades de Fiesole e Pisa.
Até então, o
frei tinha a indiferença do Vaticano. Mas quando, em 1495, passou a declarar
que Carlos VIII seria a salvação da Igreja e que Florença devia se aliar ao
monarca francês, o papa Alexandre VI, que se opunha à política francesa, o
convocou a explicar a suposta origem divina de suas motivações. Saiu de lá com
a ordem de não mais pregar.
Ignorando o
pontífice, Savonarola retomou seu trabalho. Proibiu o jogo, a bebida e as
festas, e passou a tentar extinguir o que hoje chamamos de Renascença (o nome
só surgiu no século seguinte). Nas fogueiras das vaidades, conduzia a
destruição pública de espelhos, acessórios da moda, cosméticos e qualquer
objeto que fosse considerado “causador de pecado”, incluindo livros — como
Bocaccio e Dante. E obras de arte. E isso foi feito com autorização de
alguns desses artistas, como Lorenzo di Credi e ninguém menos que Sandro
Botticelli, que renegara seu passado para seguir o frei. Ele é o autor da obra
abaixo:
A
queda
Em
retaliação, o papa Alexandre VI excomungou Savonarola e desfez a Congregação
Toscana, em 1497. A família Médici voltou ao poder e diversos grupos populares
se voltaram contra o frei, que perdia sua influência.
Preso e
torturado, Savonarola confessou que havia inventado suas visões e profecias.
Oficialmente, assim, era um herege. Foi julgado e, junto a seus seguidores
Domenico da Pescia e Silvestro Maruffi, condenado à morte. Como padres,
lhes foi concedido o direito de serem queimados mortos, não vivos.
A execução de Savonarola e seus seguidores / Crédito: Wikimedia Commons |
Em 23 de
maio de 1498, os três foram enforcados e, só então, incinerados na Piazza
della Signoria, no centro de Florença.
Uma das
figuras mais controversas da história do cristianismo, Savonarola foi, nos anos
seguintes à sua morte, considerado um santo pelo povo de Florença. Em 1523,
Martinho Lutero deu-lhe o título de mártir e precursor do protestantismo. Para
outros, principalmente a partir do Iluminismo, não passou de um impostor, louco
e fanático medieval, uma figura se movendo na direção oposta do progresso
histórico.